7 perguntas para o diretor de “Lyz Parayzo Artista do Fim do Mundo”, Fernando Santana

Documentário independente mostra entrevistas e registros de performance 

*Por Luiza Piffero 


Atualmente uma artiste prestigiada vivendo em Paris, até pouco tempo atrás Lyz Parayzo estava dando os primeiros passos como performer no Rio de Janeiro. O diretor Fernando Santana captura esse início de carreira no curta-metragem Lyz Parayzo Artista do Fim do Mundo, selecionado para a Mostra Competitiva Brasil do 14º Cine Esquema Novo – Arte Audiovisual Brasileira.

Rodado em 2017, o filme traz entrevistas com Lyz e registros de suas performances, como Bicha Presente e Fato Indumento. Usando o corpo como suporte de trabalho, as obras questionam a relação entre espaços institucionais e um corpo não binário vindo da periferia, como o dela/dele. Sem pedir autorização, as obras de Lyz promovem uma “inclusão” forçada em ambientes como uma escola de arte e uma universidade. Na definição da própria artiste, são como um “vírus que se reproduz e infesta o sistema”. 

Na entrevista abaixo, o diretor Fernando Santana compartilha a experiência de criar o filme.

 

1 - Começando pelo título do filme: Por que Lyz é a artista do fim do mundo?

Durante o processo de gravação do curta eu já pensava em algum título que descrevesse minimamente a eloquência e extravagância dessa artiste. Pensei em "Parayzo Bigfild", faria referência à cidade natal de Lyz. Outras ideias eram "Putinha Terrorista" ou apenas "Parayzo". Nesse mesmo período, Tânia Queiroz e Angela Moss escreveram em conjunto um artigo a respeito do que Lyz já representava na cena artística carioca com esse título. Ele descreve Lyz numa potência que contamina e reveste sua persona de uma armadura para lutar contra o sistema. Me transporta para a mesma atmosfera em que habitam Mulheres como a grande Elza Soares, também referência e mulher do fim do mundo. 


2 - Nos últimos anos, várias obras de artes visuais, teatro, cinema etc. relacionadas ao universo LGBTQIA+ sofreram censura no Brasil. Como esse contexto influenciou o filme?

Os casos de censura ocorridos descrevem o perfil do cidadão brasileiro contemporâneo em cenário de total retrocesso que estamos. Essas pessoas estão em nossas famílias, são nossos pais, vizinhos, tios e tias de fala sem embasamento e sem profundidade. Eu vivo (diria vivemos, mas Lyz reside na França atualmente) num país que censura obras que representam a diversidade do amor entre qualquer corpo que não esteja nos padrões heteronormativos. 

Vivo no país que mais mata corpos trans no mundo. E contraditóriamente está no topo da lista dos países que mais consome pornografia trans. Existe relação em tudo isso. Em algumas cidades mais conservadoras do Brasil onde o filme foi exibido houve rejeição da obra e questionamentos de cunho machista foram levantados a respeito da integridade e relevância dos trabalhos de Lyz. 

Durante muito tempo, afirmo que mais da metade da minha vida até então, a minha arte e a minha liberdade de expressão foram censuradas, controladas e invisibilizadas dentro de todos os contextos em que estive presente, dentro do ambiente escolar, profissional e principalmente dentro do lar pela minha própria família. Meu trabalho não é reconhecido, muito menos compreendido pelos meus pais, devido a eles não terem tido a oportunidade de acesso à educação e repertório que eu venho tendo.

O filme foi concebido sem a pretensão de existir como um filme. Eu apenas sentia necessidade de fazer e não sabia como lidar com muitos processos. Tive influência de outros trabalhos que continham as mesmas questões de simplesmente poderem existir e se expressar. Uma sensação de que não estou sozinho, que isso não acontece apenas comigo. Representa um grito abafado de resistência que vive e está presente. A arte abre fendas, o cinema registra, traz a memória à tona sempre que visitado. Eu também acredito que estamos passando por um lento processo de normalização de muitas coisas no mundo. Tudo isso se consolida na atuação de pessoas que colocam seu trabalho em visibilidade e estão presentes hoje para que outras, outros e outres também existam com mais dignidade no futuro.

 


Diretor Fernando Santana

 

3 - Como foi o processo de levar a essência da personalidade e das obras de Lyz Parayzo para a estrutura e estética do filme, que aproveita muitas filmagens amadoras, com sujeiras típicas de VHS? Considera um documentário? Uma videoarte?

Perceber a  beleza e o poder da essência na narrativa daquela persona e registrar esse movimento para a posterioridade latinoamericana sempre foi a ideia inicial. Comecei a trabalhar no audiovisual com o que tinha na mão, no caso uma handycan antiga, mas que me proporcionava registros incríveis, porém com uma qualidade de resolução não tão boa. 

Eu tento re-significar o "estar fazendo" cinema com estas ferramentas, que até então não são bem compreendidas no meio das artes e do cinema, que por si já é uma arte elitizada e de acesso a grupos específicos. 

Quando opto por transformar em um tape de um filme oficial, em distribuir de forma independente no circuito de festivais, eu coloco a obra num lugar de patamar de visibilidade e importância como filme documentário. Todavia, é uma montagem de registros de performances que ocorreram ao vivo. 

Para mim, faz alusão às muitas fitas VHS que eu consumi e gravei durante a adolescência com inúmeros conteúdos da televisão sobre cinema e música. Além da troca desses materiais entre colegas. 

As condições precárias na iluminação, o filme sendo todo rodado com uma câmera barata e no Rio de Janeiro, que já é uma cidade estética por sua história. Os movimentos de câmera na mão, a falta de apuração da técnica. Me levou a querer trazer referências aos filmes da época da pornô chanchada, do escracho de narrativas como nas produções de Carlos Reichenbach, do cinema datado das décadas de 60 a 80. Todavia, tendo como protagonista a transgressão da obra de Lyz Parayzo, numa versão atual, do futuro, do final dos tempos, onde a tela também se transforma em mais um espaço contestado, reivindicado pela artiste.

É um filme que tem seu corte final legendado no idioma original, português como recurso de melhor compreensão da fala da artiste, por orientação que recebi de profissionais de oficinas livres oferecidas em centros culturais, isso pouco antes de entrar na universidade. Foi traduzido para espanhol, inglês e francês e posteriormente teve seus diálogos dublados pela própria artiste. Essa técnica também foi adotada por orientação de colegas, e referenciando filmes que antigamente utilizavam este recurso.

A produção acaba sendo um híbrido de vídeo arte também, assim como uma performance que eu repito em uma outra perspectiva.

 

4 - O filme mostra a desconexão entre a arte transgressora de Lyz Parayzo e os espaços institucionais – a galeria de arte e a universidade, por exemplo – no início da sua carreira. Hoje, Lyz tem o reconhecimento de grandes instituições de arte do país. Como essa mudança na relação de Lyz com o sistema de arte influencia o próprio filme?

Da mesma maneira que a transgressão de Lyz abriu espaço para seu próprio trabalho, hoje em dia para suas esculturas, com o filme não foi diferente. A minha arte como documentarista naquele momento foi  organizar de maneira audiovisual a vivência e a essência da mensagem de Lyz naquele momento.

Consequentemente apareceu no caminho pessoas buscando informações sobre o filme devido a ascensão de Lyz, para pesquisas acadêmicas e por diversas identificações com sua persona. O curta-metragem também passou a estar presente ao lado de obras cinematográficas que contam a história de outros nomes importantes dentro de causas LGBTQIA+ entre outras minorias no protagonismo. No ano passado o filme chegou a ser mencionado entre os 33 melhores curtas nacionais do ano pela ABRACCINE.

 

5 - Conte sobre como se aproximou de Lyz e como foi a experiência de registrar um artista dando seus primeiros passos. 

Eu morei uma boa temporada no ateliê de alguns amigos em comum de Lyz, o 707 da Lapa. Parayzo vivia em Campo Grande, carinhosamente chamada de Bigfield, e pousava por finais de semana ou alguns dias em casa. Também guardava seu grande primeiro "dedão" que usava na performance da "Manicure Politíca" no corredor de entrada da sala principal. 

Na época o espaço era compartilhado com outros artistas como Aline Miele, Antônio Vinícius de Albuquerque e Suelly Porpino, essa que juntamente de Lyz produziu a indumentária manifesto contra o uniforme da polícia militar do Rio de Janeiro, que a artiste utilizou na performance "Bixa Presente", um de seus primeiros convites oficiais na Casa França Brasil do Rio. Tivemos grandes momentos de afeto, compartilhamos o que tínhamos e sabíamos fazer. Desbravamos um Rio de Janeiro que eu ainda não conhecia e que me proporcionou vivenciar um amor sublime, que me confirmou como fazedor de arte, como produtor audiovisual.

 

6 - Pode comentar as referências do filme presentes no Caderno de Artista?

Eu mencionei referências que me acrescentaram e continuam a acrescentar muito como fazedor de audiovisual no Brasil. Obras feitas por pessoas muito distintas, mas que possuem  proximidade de valores no que sinto necessidade em contar. 

 "Vidas Cinzas" trata de uma história que se passa no Rio de Janeiro, em vários locais em que Lyz Parayzo foi rodado. Fala sobre a crise da cidade que passa a viver apenas com cores em escala de cinza. Apresentando opiniões de autoridades e personalidades do Brasil através de um falso documentário. Também é um filme de produção independente feito com baixíssimo orçamento. E a maneira de produção e a sensibilidade do cineasta Leonardo Martinelli para com assuntos relacionados à crises existentes na sociedade é inspiradora. Necessária para tentar compreender muitos dos contextos relacionados à população brasileira. O filme pode ser visto gratuitamente no Youtube no canal do Meteoro Brasil.

Conheci o trabalho da Tertuliana Lustosa como "DJ Tertu". Na época que o filme estava sendo rodado ela discotecava na Casa Nem, também no bairro da Lapa. Soube do trabalho acadêmico da artista através de Lyz. Tertuliana, estudava História da Arte na UERJ e publicou um artigo intitulado "Manifesto Traveco-Terrorista" na Concinnitas, Revista do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. No artigo ela define o manifesto como uma arma da clandestinidade intelectual, que mesmo não trazendo soluções dadas para o problema da transfobia no Brasil, quebra o silêncio dela mesma. E isso ela já diz ser  um grande passo para as transrevoluções no país mais violento para pessoas trans segundo a ONG TransGender Europe. A artista também se apresenta como cantora de pagode baiano, gênero musical que tem ganhado cada vez mais audiência no Brasil. 

A Travestis tem gravado vários singles incluindo um dueto recente no último álbum da cantora Pabllo Vittar.

Por fim eu mencionei mais uma referência carioca. Assisti ao curta-metragem "Bethânia Bem de Perto" de Eduardo Escorel e Julio Bressane no Canal Brasil, ainda quando morava no ateliê 707. O filme é simples, de linguagem datada, porém muito rico por conter registros históricos de uma das maiores estrelas da música brasileira. Gravado em preto e branco na cidade maravilhosa, ele mostra o primeiro show em boate da cantora Maria Bethânia, na época ainda desconhecida e recém chegada da Bahia. É muito curioso assistir esse filme nos dias de hoje e perceber toda a trajetória que a cantora construiu durante décadas.

  

7 - Por fim, você poderia comentar a escolha da obra convidada e como ela dialoga com o seu filme?

Decidi convidar o filme "Vir-a-ser" da cineasta Bianca Rego. Ele é um híbrido, que transita  entre o documental e experimental. Aborda uma narrativa profunda também sobre o "estar sendo" de uma personagem em diversas personas. Possui  recursos simples, artesanais e muito simbólicos em sua estrutura. 

O trabalho me remete a referências que carrego desde antes da minha ida para o Rio de Janeiro. Tenho muito afeto pela obra por conter personas importantes que me influenciaram nos meus primeiros processos artisticos. Venho de uma região de cidades coronelistas, Mogi das Cruzes, que possui inúmeras tradições e manifestações artísticas, espaços culturais independentes, e que segue carecendo de investimentos e apoio aos criadores locais.

A diretora e produtora do filme é minha conterrânea e curiosamente também iniciou sua trajetória com o cinema nas oficinas que eram oferecidas antigamente por entidades de cultura em Mogi.
 

*O 14º Cine Esquema Novo – Arte Audiovisual Brasileira é uma realização da ACENDI – Associação Cine Esquema Novo de Desenvolvimento da Imagem. Projeto realizado com recursos da Lei nº 14.017/2020.

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