6 perguntas para Lucas Rossi dos Santos, diretor de “Ser Feliz no Vão”

Documentário mostra a importância da ocupação de espaços na luta contra o racismo

*Por Luiza Piffero

O documentário em curta-metragem Ser Feliz no Vão (2020, 12min), selecionado para a Mostra Competitiva Brasil do 14º Cine Esquema Novo – Arte Audiovisual Brasileira, escancara o racismo estrutural no Brasil e também reivindica um acerto de contas da sociedade com o povo preto. O diretor Lucas H. Rossi dos Santos construiu o filme em forma de ensaio visual, com cenas de reportagens e entrevistas com artistas negros. São eles que apontam para um futuro sem injustiça social. 

Na entrevista abaixo, Lucas conta como o filme foi inspirado nas suas próprias experiências no Rio de Janeiro, onde vive desde os 11 anos, e também esmiúça as decisões estéticas que dão ao filme uma sensação de estar sempre em movimento, como um trem, mas também como a própria história. 

O realizador também tem outro filme selecionado para a Mostra Competitiva Brasil do 14º Cine Esquema Novo: Atordoado, Eu Permaneço Atento (confira a entrevista sobre o filme aqui), codirigido por Henrique Amud, que fez a produção e a pesquisa para Ser Feliz no Vão.

 

1 - O título “Ser Feliz no Vão” é poético e forte. De onde veio?

O título vem da música da Deusa Elza Soares O que se Cala, gravada no álbum Deus é Mulher. É a música que fecha o filme, nos levando até o apogeu do povo preto, da periferia, da maioria absoluta. Protagonizamos e tomamos de assalto o final do filme, com sorriso no rosto, samba no pé, festa na praia, uma analogia ao carnaval, tudo isso em nome da comemoração de termos em nosso DNA o que existe de mais rico: a felicidade. E não só a felicidade como a grande coragem de ligar o foda-se em alto e bom som. Uma frase da música é essa, "ser feliz no vão", e como temos o trem como atmosfera do filme, achei que não existiria título melhor.

 

2 - O filme traz vários artistas pretos engajados na causa racial. Como você entende o papel da arte na luta contra o racismo?

Ao meu ver, a arte é uma forma de se expressar e quando falamos sobre o povo preto, falamos sobre um povo que foi silenciado durante muito tempo, que tirado de sua terra, foi escravizado, que foi oprimido e que até hoje vive tendo que se impor para se fazer ouvir. Então, como diz o Fela Kuti na entrevista utilizada no filme, "a arte não serve apenas para entreter, e sim para revolucionar". Ou seja, eu acredito que os artistas negros têm dentro de si essa missão porque é uma causa ancestral. E a partir disso, acho essencial o papel de artistas pretos na luta contra o racismo, visto que além de gerar debates pertinentes, esses movimentos fazem com que a população possa refletir, possa se transformar de certa maneira e, mais do que isso: é uma forma como nós podemos gritar para o futuro. E os gritos não são importantes apenas por serem ouvidos no presente, e sim porque eles vão dar continuidade às vozes dos nossos antepassados, dos griots, de quem abriu nosso caminho para chegar até aqui. Toda geração que vem depois desses gritos, vai seguir do ecoar, gritando cada vez mais alto ao longo do tempo. Seremos cada vez mais ouvidos, de qualquer maneira.

 


Lucas Rossi dos Santos. Crédito da foto: Roberto Macedo

 

3 - De que maneiras o filme dialoga com a sua experiência de vida pessoal e como profissional do cinema?

Eu fiz esse filme para debater sobre questões muito pessoais. Sendo um jovem negro que cresceu numa cidade completamente racista no interior de São Paulo e veio parar no Rio de Janeiro, vejo o mundo da forma como está no filme. Em movimento, atento, crítico, ácido e deixando passar muita coisa para poder tomar meu banho de sol e de mar. Quer dizer, me sobrou ser feliz do jeito como posso diante de tanto preconceito.

Como profissional de cinema, ali também está a minha percepção sobre a cidade que eu moro, e este recorte carrega consigo discursos que eu já ouvi de muita gente que faz cinema no Rio de Janeiro, por exemplo. A noção de privilégio não é comum aos brancos, nem mesmo aos de esquerda. Eu nunca iria expor ninguém, mas também não deixo de me lembrar das besteiras que já ouvi dos que detém voz e capital. 

Quem fala demais deveria sempre temer quem está ouvindo. 

 

4 - “Ser Feliz no Vão” parece estar sempre em trânsito, seja a bordo dos ônibus que chegam na praia ou nos carros onde os artistas são entrevistados. Pode comentar sobre como você construiu essa sensação e a importância dela para o filme?

Acredito que o filme está sempre em trânsito, mesmo utilizando imagens de arquivo que nos remetem ao passado, Ser feliz no Vão é também sobre o presente, e o final é sobre o futuro.

Então, ao meu ver, o filme tem uma brincadeira com os tempos: passado x presente x futuro, e quando percebi isso na montagem, busquei trazer essa sensação de movimento ao longo do filme como um todo. Tentei criar fluxos que nos trazem esse ritmo de brincadeira espacial, tem uma sequência que gosto muito que são imagens das pessoas no trem nos anos 1990 enquanto ouvimos "Kevin, O Cris" e ao mesmo tempo que ela anuncia o final, ela nos leva até o Mano Brown dizendo que os brancos já fizeram tudo, e que agora quem tem que falar é o povo preto, a periferia, coisa e tal. Entende a brincadeira ali? Vemos imagens dos anos 1990 enquanto ouvimos um funk atual e ao mesmo tempo vai desaguar numa fala de um profeta como Mano Brown, fazendo o que ele sabe fazer de melhor: largar o papo reto.

Logo, a importância é que esse fluxo de estar em trânsito nos faz sentir estar indo em direção ao ponto final, ao fim do trilho e neste caso, o final é o futuro, é o início de tudo, é a tomada de assalto ao que nos pertence por direito. Ou seja, não tem fim, até o último segundo dos créditos nós vemos como ser feliz no vão e refletimos sobre o quanto a burguesia nunca vai nos impedir de nada. Em tempo nenhum. 

 

5 - As entrevistas na praia são abertamente racistas, difícil acreditar que um dia foram exibidas na TV. De lá para cá, o que você acha que mudou no Rio de Janeiro?

O racismo se tornou crime no Brasil em 1989, ou seja, a gente está falando que apenas durante 32 anos as pessoas estão sendo incriminadas por cometer este crime que é ser racista. É muito recente. 

As pessoas brancas em geral (sobretudo a elite que detém o poder), não mudaram muito, elas continuam sendo privilegiadas e não reconhecem isso. Elas continuam herdeiras, perpetuando o poder e centralizando a economia e não percebem o que isso significa. Ou seja, elas seguem no poder, detendo o capital e sempre com voz e tom de superioridade.

Elas continuam perpetuando pensamentos racistas e pensando parecido com seus ancestrais escravocratas, achando que preto é empregado, que estão em desvantagem quando veem um negro em posição de igualdade. Se incomodam profundamente ao ver ou saber de negros em universidade, ou negros ocupando espaços profissionais de destaque, ou qualquer lugar onde o negro chegue que possa ocupar o espaço que antes era destinado ao branco na cabeça do próprio. E isso é tão brutal que este espaço pode ser um negro sentado num avião ou dirigindo seu carro no sinal numa cidade qualquer. Isso incomoda. Incomoda desde um policial até o milionário que está ali do lado. Isso ainda é muito violento, mesmo sendo mais sutil do que nas entrevistas que utilizamos no filme. 

Agora, ao meu ver, a única coisa que mudou de fato e não vai parar de mudar nunca mais é que hoje o povo preto ocupa todos os espaços e tem voz ativa em muitos setores e das mais variadas formas possíveis.

Estamos cada vez mais conseguindo nos fazer ouvir, entre nós e para o mundo. Sem diferenciar uma coisa da outra. Ou seja, o movimento natural é que a gente continue fazendo ecoar as nossas vozes até o dia em que a gente possa silenciar essa burguesia racista e fazer com que a elite sinta vergonha de ser quem é.

Até lá, não há como dizer que o Rio de Janeiro mudou. Ainda há muito o que se fazer.

 

6 - Por fim, poderia comentar a obra convidada a integrar o seu Caderno de Artista?

Kabadio – o Tempo não tem Pressa, Anda Descalço é um documentário de longa-metragem realizado pelo cineasta e fotógrafo Daniel Leite. O filme é resumidamente um recorte etnográfico genial sobre um vilarejo localizado na região da Casamansa, no Senegal. Quis convidar este filme pois acho que ele dialoga com Ser Feliz no Vão por dar voz ao povo preto e nos mostrar de perto toda uma cultura que a maior parte da população brasileira desconhece. Uma cultura cheia de riquezas, que traz consigo outras formas de conhecimentos e sabedorias. Logo, achei que trazer Kabadio era uma forma de transformar os olhares, de despertar interesse por um mundo que não seja eurocêntrico, de conhecimentos que não sejam brancos. Ou seja, de minimizar a ignorância e potencializar os saberes em relação à cultura negra, e as tradições de um povo que pertence à pequena parte do enorme continente africano.

 *O 14º Cine Esquema Novo – Arte Audiovisual Brasileira é uma realização da ACENDI – Associação Cine Esquema Novo de Desenvolvimento da Imagem. Projeto realizado com recursos da Lei nº 14.017/2020.
 

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