6 perguntas para os diretores de “Rocha Matriz”, Gabriel Menotti e Miro Soares

Dupla de pesquisadores e cineastas produziu uma obra conceitual sobre a exploração do mármore no Espírito Santo

*Por Luiza Piffero

Filmado entre feiras, portos e pedreiras no Espírito Santo, “Rocha Matriz” abre uma janela para a cadeia produtiva do mármore e do granito. O curta-metragem é um dos selecionados para a Mostra Competitiva Brasil do 14º Cine Esquema Novo – Arte Audiovisual Brasileira. Distante de um documentário convencional, o filme oferece uma experiência conceitual e estética única conduzida pelos diretores Gabriel Menotti, pesquisador, curador independente e professor assistente em curadoria e imagem em movimento na Queen's University, em Ontário, e Miro Soares, doutor em Artes e Ciências da Arte pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne e professor adjunto do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). 

Com apuro estético e trilha sonora sombria, o filme retrata o mercado de mármore e granito a partir do olhar fictício de uma consciência alienígena, que lê o mundo como informação, através de microscópios, drones e action cameras. As imagens, influenciadas pela tradição da fotografia moderna, são pensadas como parte de uma nova iconografia do extrativismo, capaz ir além dos aspectos econômicos para despertar sensibilidades e provocar transformação sócio-ambiental. Confira o que os autores tem a dizer sobre a obra:

 

1. “Rocha Matriz” é narrado em uma língua estrangeira. Ela representa a tal "consciência alienígena" que vocês mencionam na sinopse? Podem explicar o que está por trás dessa escolha por uma "consciência alienígena" e como ela determina a estética do filme? 

Miro Soares – O idioma do filme é o mandarin. No nosso processo de criação, sempre existiu a ideia de não tratar o tema de maneira literal, ou essencialmente informativa, pois é dessa maneira que a temática é tratada nos canais de comunicação, em rubricas ligadas à econômica ou na própria auto-representação que essa indústria faz de si. Tínhamos em mente que o filme deveria tratar da complexidade das questões de modo aberto e cinematográfico. Aberto, no sentido de apontar diferentes aspectos dentro da temática extrativista e deixar para o espectador refletir a respeito. Mais apresentar as questões e abrir um espaço de diálogo do que propor um discurso definitivo sobre elas. E cinematográfico, pois a essência do trabalho é também uma discussão de forma e de linguagem.

A ideia de usar a língua chinesa foi no sentido de se criar uma espécie de estranhamento, que a gente tentou criar também com outros elementos do filme. O fato de a maioria das pessoas ser incapaz de compreender a língua cria um distanciamento, coloca em questão também a mediação feita pela tradução e a percepção de que se está bastante distante do original. A língua chinesa também aponta para o fato de que, mesmo depois dos blocos de rochas saírem do país na exportação, sua jornada e seu beneficiamento continua alhures. E a China é o principal destino de exportação das rochas brasileiras.

Gabriel Menotti – Ao mesmo tempo, o uso de outro idioma é uma forma de trair o uso da narração como um recurso elucidativo. Aquela que seria a "voz de deus", dedicada a conectar o sentido das imagens à compreensão do espectador, acaba sendo mais um elemento que promove a dissociação entre o real e a sua representação na tela. Talvez seja o cinema a própria consciência alienígena aqui.

Por se tratar de uma voz estrangeira até para nós como diretores, também gosto de pensar que foi um recurso para tirar a realização do filme um pouco do nosso controle e contaminá-la com elementos de discurso que mesmo nós não dominamos.


Miro Soares. Crédito da foto: Miro Soares

 

2 - As cenas de homens perfurando rochas parecem colocar o homem como inimigo da natureza, agressor, invasor. Podem elaborar a crítica que está presente nessas imagens?

MS – Esse tipo de imagem da ação humana sobre a natureza, sempre coloca em questão o impacto ambiental resultante dessa ação. Essa é uma questão posta desde início quando se trata de atividades extrativistas. Mas também vale pensar que no modo de vida da sociedade de hoje, de modo geral, essas atividades são desejáveis, mesmo que elas impliquem em algum impacto sobre a natureza. Então acredito que o filme também coloca em questão essa dialética manifesta no processo entre desenvolvimento e degradação.

GM – Não vejo pessoalmente muita agressividade nos corpos que aparecem na tela. No mais das vezes, são pessoas cumprindo os papéis necessários para estar onde se encontram – pedreira, feira, porto etc. O ser humano como mais um componente do meio. Todos me parecem pequenos perto da montanha e menores ainda diante do complexo industrial que efetivamente consegue agir de forma violenta sobre o mundo. Os trabalhadores sobre a rocha não fazem – nem podem fazer! – nada "sozinhos". Numa aproximação meio sem juízo, eu diria que eles atuam menos como gestores do que como apêndices do processo extrativista. A trilha sonora talvez dê algumas pistas mais claras de onde sugerimos estarem os "centros nervosos" desse processo, mais para o fim do filme.

3 - O filme contrapõe uma certa grandeza da natureza, a montanha milenar, à rotina humana e à montanha como produto, cenário de selfie, item de decoração numa feira de design e construção. Existe um jeito de conciliar natureza e humanidade?

MS – O que mencionei na questão anterior vale aqui também. Mas além da dinâmica entre o desejo de uso da matéria-prima e a preocupação com o impacto ambiental existe também outra questão que é a do contato do indivíduo com a natureza. Nossa sociedade hoje se concentra nas cidades e, assim, seu modo de vida já é de alguma maneira desconectado da natureza. Esse contato fica restrito a ocasiões particulares, viagens de férias, excursões etc. em que a natureza é percebida como espetáculo, mas não como parte da vida de fato.

GM – “Rocha Matriz” oferece e contrasta duas formas dessa conciliação: uma acontece na montagem cinematográfica, como modo moderno de sintetizar o mundo, e a outra na narração over, que mitifica a lógica de dominação que coloca esse mesmo mundo à disposição do ser humano.

O próprio filme pode ser considerado uma terceira forma, localizada em si mesmo, que talvez busque testar em que medida as outras duas são satisfatórias.

 
Gabriel Menotti. Crédito da Foto: Miro Soares

 

4 - As legendas trazem frases muito instigantes, como “Paisagem é só uma lasca da natureza coberta de grama ou texturas jpeg”. De onde partem essas reflexões? Têm relação com as pesquisas acadêmicas de vocês?

MS – Frases como essas exprimem uma metáfora – meio paradoxal – que tentamos criar no filme que seria enxergar os blocos e as placas das rochas como uma espécie de meio de preservação (backup) da própria montanha que é destruída. Essas partes da locução parecem se relacionar de forma bastante livre com alguns aspectos dos campo da arqueologia das mídias, que é um campo de pesquisa do Gabriel. Apesar das questões do filme terem sido discutidas e desenvolvidas em conjunto, a autoria do texto da locução é dele.

GM – Esse trecho ressalta a artificialidade da noção de paisagem. A linguagem sempre foi uma ferramenta fundamental para que o ser humano pudesse reivindicar controle sobre "a natureza". Conceitos como "paisagem" implicam uma relação ordenada e superficial com o mundo, que permite que nos movamos facilmente entre representação e práticas. Há uma carga ideológica por trás da leitura de mundo que o termo implica e da posição em que ele nos coloca.

5 - Podem compartilhar algumas das suas referências criativas e comentar o conteúdo que enviaram ao Caderno de Artista?

MS – Com relação ao trabalho que desenvolvemos nesse filme, nossas referências criativas vêm principalmente do cinema experimental, que é – além de um interesse comum – um campo de pesquisa em que tanto eu como o Gabriel pesquisamos. No sentido da forma e da experimentação podemos citar artistas como Michael Snow, pela experimentação de movimentos de câmera em obras como La Région Centrale, ou James Benning pela utilização de planos longos e a criação de narrativas visuais, sem a presença da palavra. Com relação à temática ou ao tratamento de questões importantes da atualidade podemos citar referências como Adrian Paci e Allan Sekula com filmes que inclusive são apresentados para além do cinema, no campo da arte contemporânea.

6 - Por último, gostaria que vocês comentassem, por favor, a obra convidada.

MS – A obra convidada se chama “Sublunary” e é de Mariangela Ciccarello & Philip Cartelli. Philip é um amigo que conheci quando morava em Paris. Ele tem produzido com sua companheira Mariangela. Logo que terminamos o “Rocha Matriz” eu mandei o filme para algumas pessoas, inclusive ele. Depois de algumas semanas ele me respondeu dizendo que curiosamente também tinha acabado de fazer um "filme sobre pedra”. Brincamos que já podemos planejar um programa conjunto para exibição dos filmes. Então, quando surgiu essa oportunidade achamos que seria uma maneira da gente relacionar os dois trabalhos.

Nosso trabalho lida com a questão do extrativismo mineral tentando conectar uma variedade de aspectos: ecológicos, geográficos, econômicos, políticos, humanitários e estéticos a partir do nosso contexto local e apontando para os caminhos e contextos globais além do Brasil. Achamos que seria interessante relacionar nosso trabalho com o do Philip e da Mariangela pelo fato de podermos visualizar como uma mesma temática pode ser abordada de modo diferente tanto em função do contexto quanto da forma empregada no processo artístico. Talvez a visualização conjunta dos dois filmes, possa inferir certos elementos de um filme na apreensão do outro.


 

*O 14º Cine Esquema Novo - Arte Audiovisual Brasileira é uma realização da ACENDI – Associação Cine Esquema Novo de Desenvolvimento da Imagem.
Projeto realizado com recursos da Lei nº 14.017/2020.

COMPARTILHE