7 perguntas sobre “Deserto Estrangeiro”, curta-metragem de Davi Pretto

Filme de terror ambientado em Berlim traz à tona o colonialismo alemão na África

*Por Luiza Piffero

 

O trauma do holocausto parece impregnar cada centímetro de Berlim. Menos aparente, entretanto, é a relação da cidade com as violências cometidas 40 anos antes, pelo império alemão na África. A partir dessa observação, o cineasta Davi Pretto concebeu o curta-metragem de horror Deserto Estrangeiro (2020, 23min, RS), filmado durante uma temporada na cidade em 2018, quando participou do programa DAAD Berlin Artists-in-Residence, na Alemanha. O filme integra a Mostra Competitiva Brasil do 14º Cine Esquema Novo – Arte Audiovisual Brasileira

O filme é protagonizado por um jovem brasileiro (Mauro Soares) que começa a trabalhar na bela floresta de Grunewald, situada na capital alemã. Ao cair da noite, o cenário idílico ganha atmosfera sinistra e o rapaz ganha a companhia de uma personagem enigmática (Isabél Zuaa) na busca por uma mulher desaparecida. 

Confira a entrevista de Davi sobre o filme:

 

1 - Esta não é sua primeira vez no Cine Esquema Novo (CEN). Em 2008, você participou da Competitiva de curtas e médias com Dor de Cabeça, direção sua e de Bruno Carboni. No ano seguinte, repetiu a parceria com Carboni, dessa vez na Mostra da Meia Noite com Quarto de Espera. Finalmente, em 2016, o seu Rifle foi um dos grandes destaques da Competitiva Brasil. Qual a sua relação com o Festival e quais as suas expectativas para esta edição on-line? 

O CEN foi o primeiro festival de cinema que participei com um filme, na época eu era estudante. Então a experiência de estar num festival e também a ideia do que era exatamente um festival de cinema foi o CEN que me trouxe. Treze anos depois, tendo ido em vários outros festivais e voltando ao CEN em diferentes anos, sempre fiquei com a certeza de que o CEN é um exemplo de vanguarda, pelos filmes que exibe, pelos temas que discute e pela reinvenção do próprio formato do festival a cada ano. E agora mesmo com as limitações virtuais, o CEN está propondo várias coisas interessantes que proporcionam uma outra experiência online em comparação a outros festivais desse momento pandêmico. 

 

2 - Por que escolheu do cinema de horror para fazer essa analogia com o colonialismo alemão em terras africanas?

Não é uma escolha calculada que em dado momento se diz "vamos escolher isso" para narrar tal assunto. O cinema de gênero coabita a minha cinefilia junto de outros cinemas, e essa mistura faz parte do meu imaginário. Acredito que filmes que dirigi como Rifle e Castanha expressam essa mistura. Quando eu estava pesquisando o passado colonial alemão, cheguei a cogitar outras possibilidades como fazer um filme de arquivo, mas que se mostrou inviável pelo tempo que eu tinha para terminar o projeto na residência. Essa própria tentativa acabou resultando nas fotos de arquivo que iniciam o curta hoje. É um processo que deixa pequenos rastros no filme. Em dado momento, a história me parecia inenarrável e o horror nos pareceu uma tradução do indizível, o que pra mim é a essência do cinema de gênero.

 

3 - A atriz portuguesa Isabél Zuaa chama a atenção pelo teor político das suas falas. Como foi o processo de construção dessa personagem enigmática?

A personagem de Cadija, que Isabel atua, tinha uma singularidade que era ser uma personagem que carrega uma história a narrar. E "narrar é uma forma de fazer reviver os mortos" já disse Saidiya Hartman. Em Berlim, conheci Israel Kaunatijike e Talita Uinuses, descendentes respectivamente de herero e nama, que foram grandes inspirações para Cadija. Eles eram muito ativos na luta pela reparação do povo herero e nama. Pessoas com a força da palavra, que narram e fazem reviver a história. Ao mesmo tempo, toda personagem é formada por uma teia de sensações, percepções de mundo, pessoas que conhecemos, livros lidos, memórias, fabulações e atravessamentos. E quando Isabel entra no projeto, ela amplia essa constelação com a visão muito especial que ela tem da vida. E claro com a potência indescritível que ela tem em cena. 

 


Davi Pretto. Crédito da Foto: Divulgação 

 

4 - O protagonista do filme é um brasileiro que vive em Berlim. A experiência dele se relaciona com a tua na cidade?

Eu e Paola (Wink, produtora e montadora do filme) frequentávamos muito o Grunewald, o parque/floresta que depois filmamos. Era um dos nossos lugares preferidos na cidade. Eu dizia que poderia ser feliz trabalhando ali. E assim surgiu o personagem do Gustavo. E de tanto frequentar o parque, a gente passou a observar como ele funcionava em relação à cidade, em termos de espaço de preservação da natureza e de um não-lugar, mas também de um lugar de privilégio branco e de exclusão racista. E isso nos transporta para a Alemanha colonial em África. Então, frequentar o parque significava muitas coisas e acho que isso está no filme de alguma maneira. O horror na calmaria da paisagem.

 

5 - Pode comentar o conteúdo que você enviou para o Caderno de Artista?

É um pequeno relato pessoal, uma revisitação digamos, que fiz nas minhas memórias de ter feito o filme. Talvez contenha ali uma pequena janela para olhar o filme por onde eu o olho em suas potencialidades e fraquezas, no que ele foi ao longo do processo, no que queríamos que ele fosse e o que ele talvez seja para além dele mesmo. 

 

6 - Neste comentário enviado para o Caderno de Artista, você menciona que não viu em Berlim menções às atrocidades cometidas pelo império alemão na África. Como o seu filme, ou seja, a visão de um brasileiro sobre o tema, foi recebido pelos alemães?

Curiosamente, é um filme ainda não exibido na Alemanha, então pouco tenho a dizer a respeito. O que sinto é que o passado colonial é um tema que mexe com todos nós, pois está profundamente ligado com as violências e injustiças do mundo de hoje. Os europeus brancos e os brancos latinos (muitos que estranhamente se vangloriam de ter descendentes europeus) devem fazer a travessia de se reconhecer dos lados dos exploradores e assassinos. Cada um reage de uma maneira nesse percurso, inclusive através da negação. Alemanha fez uma revisitação crítica profunda do holocausto, mas sinto que escolheu evitar e esconder o seu passado colonial em África, mesmo que as práticas de extermínio e campos de concentração do holocausto tenham sido iniciadas e testadas primeiro por eles em Namíbia contra os hereros e namas. 

 

7 - Por último, gostaria que você fizesse um breve comentário sobre a obra convidada, Bell Hooks and Arthur Jafa Discuss Transgression in Public Spaces at The New School, de Bell Hooks e Arthur Jafa (2014, 83min, EUA), e outras referências que você trouxe para o Caderno de Artista.

São filmes, conversas e artistas importantes para mim nos últimos anos e que ecoaram no período que fizemos o curta. Bell Hooks, uma das mais importantes pensadoras das políticas da imagem, Arthur Jafa, grande artista, Godard com seus 90 anos em grande forma em seu pensamento provocador, e Grace Passô atriz/diretora/autora essencial do nosso cinema brasileiro recente. 
 

*O 14º Cine Esquema Novo – Arte Audiovisual Brasileira é uma realização da ACENDI – Associação Cine Esquema Novo de Desenvolvimento da Imagem. Projeto realizado com recursos da Lei nº 14.017/2020.

 

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