6 perguntas para Carlos Adriano, diretor de "sem título # 6 : o Inquietanto"

Filme se apropria de obras de gêneros e tempos diversos

*Por Clara Corleone 

 

O diretor Carlos Adriano hesita ao comentar seu curta-metragem sem título # 6 : o Inquietanto, selecionado para a Mostra Competitiva Brasil do 14º Cine Esquema Novo – Arte Audiovisual Brasileira. Na sinopse, chama de “espelho de meu desespero”, citando um poema de Charles Baudelaire, e um “convite ao abismo”, parte cinepoema de found footage, parte ensaio documentário. O título dá mais uma pista: vem do conceito freudiano unheimlich, traduzido por alguns autores como "inquietante" ou "estranho".

A obra costura, sem aparente hierarquia, filmes, músicas, poemas e artes plásticas, citando artistas de tempos e estilos diferentes. Entre eles estão Teinosuke Kinugasa, Martin Scorsese, Dinah Washington, Robert Walser, Antonin Artaud e Man Ray. Carlos Adriano se apropria um pouco deles para criar uma obra experimental e profundamente pessoal. Veja abaixo o que ele tem a dizer sobre ela.

 

1) Essa não é sua primeira vez no CEN: em 2019, você participou da Mostra Competitiva com o filme “sem título #5: a rotina terá seu Enquanto”. Qual a sua relação com o Festival? E quais suas expectativas para essa edição tão diferente, não presencial?

Em 2019 participei pela primeira vez do festival. As edições não presenciais de festivais têm se tornado comuns, uma solução compulsória, com coisas boas e coisas ruins, muito difíceis de mensurar ainda (ao menos para mim), pois ainda estão acontecendo e se desenvolvendo. Com cautela, poderia dizer que acho positiva a possibilidade “teórica” (hipotética, em tese) de mais pessoas terem acesso aos filmes, com a conveniência de o fazerem a partir do conforto de suas casas. Acho ruim não haver o encontro presencial entre o artista e o público, tanto no contexto de uma “q&a” como sobretudo da própria condição da exibição pública (coletiva) natural do cinema. É uma experiência insubstituível, que fatalmente será redimensionada.

 

 2) A trilha do filme é muito marcante. Como foi a escolha dela?

Eu sempre dou atenção igual ao aspecto sonoro e ao aspecto visual de meus filmes. Todos (desde o primeiro, finalizado em 1989) têm muito clara a consciência do fenômeno “audiovisual” do cinema. No caso específico do “sem título #6”, a escolha desta trilha deu-se em função de uma “adequação” tanto ao filme americano (do qual foi extraída) como ao filme japonês. O filme americano, aliás, tem incríveis coincidências e ressonâncias narrativas com o filme japonês (em termos do plot mesmo). Esta é uma das inúmeras possibilidades do trabalho de reapropriação cinematográfica: a descoberta de relações supostamente insuspeitadas. Para as escolhas, há uma dose igual (ou talvez até maior) de recusas, no sentido de que o amálgama deve funcionar como nova coisa indissolúvel.

  

3) Você disse que o verso “espelho do meu desespero” formula uma definição do que você sentia em relação ao filme. Fale mais um pouco sobre isso, por favor.

No momento de concepção e criação do filme, ao redor de 2019, portanto anterior à fase mais crítica da pandemia, este era um sentimento que o verso do poema “Música”, de autoria do meu xará Charles (Baudelaire), anjo 67 desgarrado do século 19 a naufragar nas praias do século 21, expressava muito bem, em função de várias variáveis que eu vivia então. Agora, com o filme circulando em plena catástrofe, com o inferno instalado, e sem a perspectiva de purgatórios (e muito menos paraísos) artificiais à vista num horizonte provável, o verso é daquelas coisas que funcionam como juízo, anátema e oração. E o filme parece um testemunho presciente (antes de que “visionário”) de uma situação meio que impossível de se imaginar. No fundo, o verso valeria para qualquer formulação sobre o que quer que se produza em tempos de desespero.


Diretor Carlos Adriano, de "Sem Título # 6 O Inquietanto"

4) Como diz Augusto de Campos, “seu cine se nega à / cinemesmice”. Esse sempre foi o seu desejo? De onde veio a vontade de fazer um cinema diferente, que se nega a mesmice?

Nunca foi meu desejo, no sentido de que nunca foi um ato programado. Simplesmente, a “arte de recusa”, da qual Augusto é um dos mais notáveis exemplos no Brasil, como autor e como crítico, foi meu caldo de formação. Não houve “vontade de fazer um cinema diferente”; foi algo espontâneo, fiel à minha experiência, inclusive de formação. Eu me formei artisticamente nesse cânone (matize-se essa palavra problemática) da poesia concreta. As referências estabelecidas por Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari me serviram de “nutrição de impulso”, o paideuma proposto foi um norte na trilha de estrelas de um céu. Portanto, o que eu viria a produzir após esse período de formação, seria reflexo deste gosto e deste aprendizado (que, evidentemente, continua). De certo modo, a maioria dos depoimentos (citações) que incluí no material para o caderno testemunham a especificidade de meu trabalho. É uma constatação, mas também um reconhecimento. 

5) Como foi a sua experiência com a construção do Caderno de Artista?

​Bem agradável.​ É gratificante poder recolher o que seriam de certa forma “fragmentos de um discurso amoroso” (para citar Barthes) sobre a própria obra. Faço filmes desde 1988; portanto, a coleta de testemunhos sobre o trabalho não é apenas a lembrança de uma legitimação de um trajeto de mais de três décadas, com constância e (espero) consistência. Demonstra também uma forma de resistência. E, evidentemente, proporciona uma tomada de consciência não apenas de um percurso, mas de uma realização (em vários sentidos do termo). O processo de elaboração e reunião dos materiais para o Caderno de Artista foi prazeroso, na medida daquela consciência do trabalho mas também de ter tomado a tarefa como a montagem de um filme, a articulação de materiais para formar um conjunto coerente – o que, aliás, é pertinente no caso de um filme da série “apontamentos para uma autocinebiografia (em regresso)”.

 

6) Por fim, comente sobre sua obra: Muitas décadas antes de perder a possibilidade de comunicação verbal, a propósito de “O Eclipse”, acho, Antonioni já dizia que, se pudesse comentar com palavras o filme que havia feito, então não teria sido necessário fazer o filme. No final do “Decameron”, Pasolini (na persona de Giotto) se pergunta para que realizar uma obra após havê-la sonhado. A questão de sempre, do “artista inconfessável" de João Cabral. Em geral, tenho cada vez mais reticência em falar diretamente de um trabalho. Embora acho que tenho algum instrumental crítico-acadêmico que me permitiria fazê-lo. Eis outra coisa positiva do Caderno de Artista: permitir um diálogo enviesado, literalmente através até, com outras obras, como um discurso indireto livre. No caso deste “Sem Título # 6”, a coisa se revela mais complexa e impositiva, em suas recusas. É o inquietante que tanto inquieta e retorna. É uma experiência abissal – não à toa incluí no Caderno de Artista o meu poema “poesia abismo”. É “espelho do meu desespero” mas também um convite ao abismo, na companhia-guia (naturalmente desgarrada e irremediável) de Artaud e Walser, mas também de Kinugasa. 

 

*O 14º Cine Esquema Novo – Arte Audiovisual Brasileira é uma realização da ACENDI – Associação Cine Esquema Novo de Desenvolvimento da Imagem. Projeto realizado com recursos da Lei nº 14.017/2020.

 

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