Bastidores do 14º Cine Esquema Novo – Arte Audiovisual Brasileira: o olhar dos curadores

Jaqueline Beltrame, Dirnei Prates, Gustavo Spolidoro e Vinícius Lopes foram os responsáveis pela seleção de filmes da Mostra Competitiva Brasil e da Mostra Outros Esquemas, em 2021

No princípio, eram 395 inscrições. E a maioria dos filmes era muito boa.

Mas como essa montanha cinematográfica dá origem ao festival Cine Esquema Novo – Arte Audiovisual Brasileira? A resposta está nos curadores, que toparam o desafio de assistir a 144 horas de material, discutir, rever e discutir um pouco mais. Após uma série de escolhas difíceis, eles atingiram um consenso sobre o que entra na programação do festival. Este texto conta como essa mágica esse trabalho acontece. 

Antes de tudo, é preciso avisar que, além de receber inscrições, os curadores também fazem uma busca ativa por obras, convidando artistas com uma produção emergente ou nomes que se destacam em festivais, bienais e exposições mundo afora, a inscreverem seus trabalhos no CEN. 


Jaqueline Beltrame (crédito: Thiéle Elissa), Dirnei Prates (crédito: Nelton Pellenz),
Gustavo Spolidoro (crédito: Danilo Christidis) e Vinicius Lopes (crédito: Pátio Vazio)

O festival é organizado pela ACENDI – Associação Cine Esquema Novo de Desenvolvimento da Imagem. Nesta 14ª edição, o time de curadoria inclui dois sócios, a produtora de cinema e artes visuais e curadora audiovisual Jaqueline Beltrame, que também fundou, dirige e produz o festival, e o cineasta e professor de cinema da PUCRS, Gustavo Spolidoro, que também ministra a oficina Câmera Causa (Ramiro Azevedo e Alisson Avila são os outros dois integrantes da ACENDI, mas neste ano não são curadores da Mostra Competitiva Brasil). Desde 2018, o time inclui o cineasta Vinícius Lopes, sócio-fundador da produtora Pátio Vazio. E neste ano o artista Dirnei Prates foi convidado a unir-se ao grupo e reforçar ainda mais a vocação do Cine Esquema Novo para misturar cinema e artes visuais. 

“O Cine Esquema Novo surgiu num momento de diluição de fronteiras entre artes visuais e cinema. Lembro de trabalhos meus que passaram no CEN, mas também em galerias. Acho super bom que não tenha sido apenas um modismo, mas servido de base para coisas que vieram depois. Sair do esquema de galeria e ver um filme projetado numa tela é outra experiência”, compartilha Dirnei, que já teve duas produções autorais exibidas no Cine Esquema Novo, Ocaso, em 2004, e timor mortis conturbatme, em 2006.

Com 13 edições realizadas desde 2003, o CEN já passou por diferentes maneiras de selecionar os filmes. Nos primeiros anos do festival, todos os curadores assistiam a todos os filmes inscritos (uma maratona que poderia durar mais de um mês e superar mil obras). Atualmente, o quarteto se dividiu em duplas. Cada uma analisou metade das obras inscritas, cerca de 200, e fez uma pré-seleção. Foi um primeiro filtro para eliminar as obras que não dialogam com o perfil do festival, que busca filmes inventivos, com narrativas fora do padrão e pouco comerciais. Na segunda etapa, cada dupla assistiu aos filmes que passaram pelo crivo da outra. Ao final, os quatro debateram e assistiram novamente a algumas obras. 

Vinícius comenta a intensidade do processo todo: “A gente não consegue pensar em nenhuma outra coisa enquanto está fazendo a curadoria do CEN. Realmente nos suga, ficamos encantados com o que estamos vendo. Ao mesmo tempo, tem uma responsabilidade porque são muitos trabalhos enviados.”  

Nas primeiras edições do festival, a equipe avaliava os filmes usando o código “CISE” – abreviação para criatividade, inovação, surpresa e experimentação. Hoje, essas palavras ainda orientam os curadores, mas de maneira livre, como explica Jaqueline: “Está introjetado na gente, mas o que tem de diferente é o acúmulo da experiência de fazer o festival, de pensar que um filme pode ser muito interessante, mas há cinco anos mostramos um parecido com este então hoje podemos optar por novos caminhos; ou ainda um olhar para outras programações e experiências não relacionadas ao CEN, mas que nos trazem referências e diferentes conhecimentos. Então o leque se abre muito mais.” 

Após duas décadas de evento, os próprios realizadores já compreendem melhor a proposta do CEN, e inscrevem filmes que dialogam com ela. Vinicius explica que ele mesmo foi “formado” pelo festival: “Para um público jovem de realizadores, é muito importante ver diferentes formas e propostas de fazer audiovisual num momento de formação. Não ver apenas filmes bem acabados, com caminho de mercado muito claro, que já estejam em caixas bem certinhas e saibam onde vão passar. A influência do CEN em algumas gerações de realizadores é muito grande. Para mim, foi crucial."

 

A seleção de 2021

 

Em 2021, os curadores escolheram 31 filmes para a Mostra Competitiva Brasil e mais 12 filmes para a Mostra Outros Esquemas, que dá espaço para grandes obras que, por diferentes motivos, não se encaixam na proposta da programação principal do festival. Vindos de sete Estados brasileiros, os filmes dessa programação paralela emocionaram os curadores ao tratar de temas como o movimento feminista surdo (Seremos Ouvidas, de Larissa Nepomuceno Moreira) ou transfobia nas prisões (Homens invisíveis, de Luis Carlos Fontes de Alencar Filho). 

“Algumas coisas precisam ser ditas independente da forma. A Mostra Outros Esquemas trabalha muito nesse sentido, tem muitas ficções e documentários abordados sob pontos de vista únicos. Valem um olhar atento, são muito contundentes”, recomenda Vinicius.  

A seleção principal também dialoga com questões atualmente em pauta no Brasil e no mundo. Em anos anteriores, surgiram, por exemplo, muitos filmes relacionados a protestos. Em 2021, a pandemia foi um tema incontornável. Por isso, os curadores optaram por obras que abordaram o assunto de maneira inusitada, como o cômico Eu Não Sou um Robô (de Gabriela Richter Lamas, Maurílio Almeida, Felipe Yurgel e Guilherme Cerón) e o lírico Cantar é com os Passarinhos, de Amanda Teixeira.

As pautas sociais, que aparecem desde a primeira edição no CEN, também estão presentes neste ano. Segundo Vinícius, “no Brasil, elas são eternas”. Já as causas que estão em ebulição nas redes sociais aparecem em trabalhos mais maduros, trazendo novas visões das lutas feminista, indígena e LGBTQIA+. Nesta última categoria, os curadores revelam que foram às lágrimas com Os Últimos Românticos do Mundo, de Henrique Arruda, e se surpreenderam com Vento Seco, de Daniel Nolasco.

Para a Mostra Competitiva Brasil, os curadores limitaram a seleção a 31 obras, pois a ideia é que o público possa fazer uma imersão em cada uma delas. Por isso, os realizadores foram convidados a compor um Caderno de Artista com registros do seu processo criativo, referências, ferramentas de trabalho e o que mais desejarem incluir. Além disso, eles indicam outro filme para dialogar com a sua obra. O filme indicado e o Caderno de Artista como um todo não competem na mostra, mas são uma porta para que o público entre no universo de cada artista. 

Jaqueline explica que essa ideia surgiu da necessidade de adaptar o festival ao formato online: “A gente sempre propõe algo diferente (no CEN), como exibir filmes em galerias, como videoinstalação, ou trazer um trabalho que circula muito em galeria de arte para a sala de cinema, então o que a gente ia fazer sem essa possibilidade de explorar espaços, fazer performances audiovisuais? Aí veio a ideia do Caderno de Artista, um espaço que cada realizador pode ocupar com o que quiser.”

A consequência desse formato é que cada filme é tratado de maneira individual. Não há mostras temáticas nem sessões. Os filmes estarão disponíveis no site do CEN 24 horas por dia durante os seis dias do festival. Não serão exibidos em grandes telas numa sala escura ou em galerias de arte, mas  provavelmente em um computador ou em uma TV. 

E essa novidade tem impacto no trabalho da curadoria. Obras que funcionam melhor como instalações numa galeria, por exemplo, são preteridas. Gustavo justifica: “Quando tu pensas em cinema, tu pensas em sessão. Com filmes de menor duração, tu pensas em sessões com dois, três, quatro trabalhos. Na internet, cada trabalho vai ser visto individualmente através do Caderno de Artista. É algo que sempre quis fazer: passar um curta, depois debater. Mas como você vai resolver isso na sala de cinema? Nesse ambiente (online), dá pra analisar cada trabalho como uma obra única, com todas as referências.”

A própria equipe do festival está ansiosa para ver os Cadernos de Artista. Seu conteúdo é uma surpresa que ainda está sendo elaborada pelos artistas selecionados. Em breve, você poderá conferir tudo e se surpreender também. 

O 14º Cine Esquema Novo - Arte Audiovisual Brasileira é uma realização da ACENDI – Associação Cine Esquema Novo de Desenvolvimento da Imagem. Projeto realizado com recursos da Lei nº 14.017/2020.

*Texto por Luiza Piffero

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